segunda-feira, 9 de novembro de 2009

TEMPO DE DIA DE ANOS


A vida não é um romance, é feita de pequenos contos que são inscritos no grande livro, até que um dia seja escrito FIM
Não me lembro dos meus dias de anos.
Julgo até que não fazia anos. Faz tanto temp!
Talvez o meu dia de anos passasse tão depressa que não tinha tempo para se fazer, ou então, os meus anos não me acompanhavam no tempo que eu ia passando e não se faziam, passavam.
Recordo sim o tempo do meu pai, como recordo o tempo de minha mãe. No tempo em que eu devia fazer anos, o tempo do meu pai foi curto. Foi tão curto, mas marcou fundo o tempo que esteve comigo. Durante esse tempo foi o meu porto de abrigo. Aliás os pais sempre são o porto de abrigo dos filhos.
Chamavam-lhe o médico dos pobres. Só o soube mais tarde, como só mais tarde entendi porquê.
Recordo o dia em que nos deixou. Era domingo. Um domingo de um mês de Abril. Poderia ser um domingo igual a tantos outros que haviam passado, mas aquele foi diferente. Foi um domingo ofuscado.
Eu estava brincando com outras crianças da minha idade, jogando à bola, mas o sol naquele dia não brilhava como costume, era misturado com cinzento. Pelo meio da tarde chegou uma notícia que eu, ingenuamente, não soube entender.
Uma vizinha chamou-me, pegou-me na mão e juntamente com a sua filha, a Rosa, levou-nos para sua casa. Ajoelhamo-nos diante de uma imagem, razoavelmente grande, pintada de cor azul e que tinha muitas estrelas. Começamos a rezar. A meio da reza a minha vizinha enganou-se e voltamos ao príncipio. Eu não entendia aquelas coisas, mas não sei porquê, com aquele engano, dentro meu peito algo deu um salto e ao recomeçar a rezar tive o pressentimento que não voltaria mais a ter meu pai, que o meu pai não mais entraria a porta da nossa casa.
Comi em casa daquela vizinha e só depois me levou a minha casa.
Os meus tios, a irmã da minha mãe e o marido, o meu tio Zé, tinham vindo, entretanto, para nossa casa fazer-nos companhia.
Pela noite dentro vieram dois homens bater à nossa porta dizendo o que eu não entendi e perguntar como minha mãe, que estava desfeita, queria o funeral. Recordo-me que o meu tio Zé os empurrou pela escada, de uma forma que me admirei, pois meu tio era uma pessoa muito calma.
Funeral era coisa que eu não entendia. O que era um funeral?
Pela manhã foram chegando pessoas a casa, com cara circunspecta e ar sério, que tinham palavras de conforto para minha mãe e para meus irmãos, a minha irmã e meu irmão, já adultos. A mim passavam-me a mão pela cabeça. E foi assim quase o dia todo.
Dizem que as crianças se tornam adultos em presença da morte. Sinceramente eu não entendia o que se passava. Apenas sabia que o meu pai , fisicamente, não estava ali e eu continuava a ser uma criança sem compreender o que se passava à minha volta.
Só comecei a entender quando, passados alguns dias, começamos , minha mãe e eu, a ir ao cemitério ver a campa do meu pai, onde a minha mãe colocava flores. A campa do meu pai era um pequeno monte de terra a mais, igual a tantos outros que estavam ali, numa fila.
Ainda agora sinto a falta do meu pai, da minha mãe, da minha irmã, enfim, dos membros da minha familia que me estarão esperando do outro lado da vida. Muitas vezes me pergunto se nos vamos encontrar todos do outro lado da vida e nos iremos reunir novamente, como faziamos pelo Natal. Com o tempo compreendi que a passagem é tão efémera e deixa uma saudade tão grande, que não dá tempo para que tivesse tido dia de anos até agora.
Talvez por isso, depois daquele domingo, que não era dia dos meus anos, nunca mais tive tempo de dia de anos.
Dos dias anteriores, não me recordo.

3 comentários:

Ianê Mello disse...

Belo e triste.

Realmente amadurecemos na presença da morte e não é fácil lidarmos com ela, principalmente em se tratando de um ente querido.

Parabéns pelo retorno à escrita!

Continue...

Paz e Luz!

Beijos

mARa disse...

...verteu-me gotas dos olhos...

Triste como dissertou a dor da morte, embora no prisma de uma crinça que nada entendia da morte...Essa criança mora dentro de ti ainda sem entender "porque essa passagem efemera, nos encontraremos na ceia de Natal, ou..."

Queria poder dizer-te muitas coisas, mas não tenho palavras...

então deixo-te um Beijo de Feliz dia de anos [ que julgo ser aniversário?]
se não for felicidades na mesma, pois parece que deseja esse dia, essa felicitação que faltou em algum tempo.

Beijos!

patricia disse...

Aqui me encontro, tal como prometido,... e reflectindo o diálogo de ontem.
Parabéns pelo blog
Patricia